Não é a ocasião que faz o ladrão. Ela apenas o revela
Tem causado espanto que cada vez mais as pessoas achem normal enganar o outro, em levar vantagem, em distorcer os fatos, em se fazer de vítima para justificar porque fez mal a outra pessoa, seja na elaboração de um contrato, na venda de produto, na prestação de serviço ou, numa reunião de condomínio. A tecnologia e o conhecimento evoluíram, mas também na mesma proporção os métodos e meios de enganar. Basta vermos no dia a dia as pessoas se negando a assumir compromissos por escrito ou distorcendo o que acabaram de dizer, mesmo na frente de várias testemunhas. Pode ser que escândalos como do Mensalão e do Petrolão tenham exposto a má-fé disfarçada pela dissimulação e falta de “vergonha na cara” de muitas autoridades e famosos que deveriam dar o exemplo, pois são privilegiados nessa nação extrema desigualdade social. E, diante disso, influenciado de forma negativa a população, que ao invés de se constranger e passar a ser mais exigente com a conduta própria e alheia, se entregou ao desânimo e aceitação desse comportamento vergonhoso, aderindo a um novo modo de agir desonesto. Banalizou-se o mau-caratismo.
ATOS ILEGAIS E INCONFESSÁVEIS SÃO PRATICADOS NORMALMENTE
Essa involução tem afetado os negócios e vemos cada vez mais vendedores prometendo o que não existe ou dizendo que pode ser realizado o que é ilegal ou inconfessável. Basta vermos a quantidade de pessoas que realizam alterações ilegais em seus imóveis após a construtora obter o Habite-se, como se não existissem leis, a convenção que proibisse tais obras e nem os vizinhos do apartamento que são prejudicados com o aumento da sua insegurança em decorrência do novo telhado ou com a chaminé que surge do apartamento térreo.
Há ainda aqueles que vendem vagas de garagem inexistentes e que anunciam o imóvel localizado num bairro valorizado, apesar de o registro imobiliário constar que o bairro é ao lado, que é mais simples. Vários são os casos de pessoas que compram a cobertura, mas depois descobrem que o documento se trata de um apartamento comum que o vendedor invadiu o telhado e fez uma reforma ilegal, tendo sido omitidas essas informações.
A ética, que consiste no conjunto de valores e princípios que determinam nossas condutas, deve ser mais valorizada, especialmente pelos governantes, autoridades e julgadores que devem nos proteger das situações injustas e decorrentes do abuso do poder. Conforme muito bem colocado por Mário Sérgio Cortella e Clóvis de Barros Filho quando abordam o tema sob o título “Não é a ocasião que faz o ladrão. Ela apenas o revela” – no vídeo que vale a pena ser visto no YouTube – vida nos coloca três dilemas: quero, posso e devo. Há aquele que quer e pode e por isso acha que deve fazer. Outro pode, mas sabe que não deve fazer. Há coisas que devo, mas não quero. Sob essa perspectiva, a pessoa decide ser ladrão antes mesmo de surgir a ocasião, e, quando aparece a oportunidade, está pronto para aproveitá-la”. Desta forma, vários são os que se aproveitam para induzir o cliente a assinar um contrato que sabem que ocasionará dano, pois se importam apenas em obterem lucro, mesmo que seja injusto.
POLÍTICOS REFLETEM PERFIL DOS CIDADÃOS QUE OS ELEGEM
O que nos dá esperança são as pessoas que têm diversas oportunidades para praticarem um deslize para levar vantagem ou obter lucro indevido, mas não o fazem, pois têm ética. Uma sociedade eticamente desenvolvida, por educação e por cultura, entende ser normal abrir mão de algum desejo para favorecer a convivência social, pois presam um bem maior, rejeitam a “esperteza”. Valorizam a moral, pois agem de maneira correta e digna independentemente de estarem na frente de alguém ou de poderem ser expostas, pois mesmo sozinha a consciência determina o agir honestamente, a cobrar o valor justo e a pagar o que é devido espontaneamente, seja quem for o beneficiado. O agir ético e moral não cede à justificativa num dispositivo legal ou no contrato mal redigido para lesar o vizinho, o credor ou para levar vantagem financeira que qualquer cálculo matemático e a lógica deixam claro ser abusiva.
Agir com retidão é um dever, mas a cada dia temos visto isso ser relativizado, o que torna o convívio difícil. É preciso abdicar de alguns desejos, especialmente se nos envergonham. A família é a célula da sociedade, sendo essa reproduzida de forma ampliada nas reuniões condominiais e de negócios, sendo estranho essas pessoas acusarem os deputados e senadores por formarem o Congresso gerador de decepções, pois na prática, agem de maneira bem semelhante aos políticos que recriminam.
É triste vermos nas assembleias de condomínio os responsáveis por elas fraudando a ata na frente dos vizinhos, distorcendo a verdade para lesar os outros, não se corando ao serem flagrados, pois se tornaram sem vergonha ao perderem a moral e o senso de dignidade.
Esse artigo foi publicado no Jornal Diário do Comércio
Kênio de Souza Pereira
Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB Federal
Conselheiro da CMI-MG e do SECOVI-MG
Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário