As locações de apartamentos ou de seus quartos por meio de aplicativos têm gerado preocupação, pois a falta de compreensão das leis e do direito dos condôminos tem ocasionado conflitos que poderiam ser evitados mediante a redação profissional da convenção. Diante do voto do Ministro Luís Felipe Salomão, como relator do processo que está em julgamento no Superior Tribunal de Justiça, que entendeu ser viável uma senhora e seu filho alugarem os quartos de dois apartamentos de um edifício em Porto Alegre (RS) por meio do Airbnb, ficou evidenciado que o tema foi tratado sem a devida reflexão. Talvez por isso, o julgamento tenha sido suspenso pelo pedido de vista do Ministro Raul Araújo.
Todos somos adeptos dos benefícios incalculáveis do avanço das tecnologias, que reduz distâncias, burocracias e custos, mas fato é que sua utilização não livra as pessoas de observarem as leis. Nos edifícios em que a convenção estipula que os apartamentos são destinados a moradia familiar os conflitos têm sido crescentes. Não é porque a tecnologia agiliza procedimentos que quaisquer “processos” possam ser praticados por todos indistintamente. Mudou o ambiente, de físico para virtual, mas as leis que regulam as relações jurídicas continuam as mesmas.
Um edifício residencial é bem diferente de um apart-hotel, pois neste é inerente a enorme rotatividade de pessoas que exige o controle por recepcionistas e porteiros especializados, além de seguranças para reduzir atos ilícitos. Por isso, a quota de condomínio do apart-hotel, é muito mais elevada que um prédio residencial, sendo que inúmeros não precisam de porteiros. Não é justo os moradores do prédio residencial serem sacrificados pelos que desejam lucrar mais sem ter o custo de um apart-hotel, e que, diante da rotatividade elevam os custos com água, elevadores, limpeza e energia elétrica, havendo casos dessa minoria desejar impor a contratação de porteiro para controlar as chaves para os hóspedes.
O Ministro Luís Felipe, como relator, analisou a utilização do apartamento como se esse não fizesse parte de um condomínio com dezenas de famílias, dando a entender que a locação diária seria uma situação isolada nos edifícios, ao afirmar “penso ser ilícita a prática de privar o condômino do regular exercício do direito de propriedade, em sua vertente de exploração econômica”, tendo ele esclarecido que a locação diária não se enquadra na Lei do Inquilinato e nem como hospedagem por não oferecer outros serviços. E acrescentou, dizendo: “Tampouco há qualquer prova ou elemento indiciário de quebra ou vulneração de segurança quanto ao convívio no Condomínio. Com efeito, há mesmo, ao revés, uma ideia de que a locação realizada por tais métodos (plataforma virtual) são até mais seguros – tanto para o locador como para a coletividade que o locatário convive, porquanto fica o registro de toda a transação financeira e os dados pessoais deste e de todos os que vão permanecer no imóvel, inclusive com históricos de utilização do sistema”.
Na realidade, temos casos concretos, como de uma construtora em Belo Horizonte-MG, que ao conseguir vender apenas 10 do total de 20 apartamentos de um prédio no Bairro Santo Antônio, visando obter lucro com as unidades vazias, passou a anuncia-las em 30 sites de hospedagem, dentre eles o Airbnb, sendo impossível apurar a idoneidade de cada turista, se há documento falso, o qual é fácil de ser obtido. O resultado foi a ocupação de todo tipo de pessoas, grupos de jovens que promoviam festas até o amanhecer, pessoas utilizando o prédio para programas sexuais, assédios de moradores nos elevadores pelos “clientes” e hospedes festeiros, que resultaram em vários Boletins de Ocorrência, além de perda do sossego e da insegurança. No dia 05/09/19, a 13ª Câmara Civil do TJMG deferiu liminar determinado a proibição de fazer o prédio um apart-hotel, sob pena de multa diária de R$1.000,00, tendo o sábio Desembargador Relator, Luiz Carlos Gomes da Mata, comentado no voto “Os fatos narrados e fartamente comprovados nos autos são assustadores, pois revelam um drama que as acachapantes modificações dos costumes e práticas comerciais podem impor às família no âmbito do que lhe é mais sagrado: o lar. (…) E é gritante o risco a que estão sendo expostos, com o fluxo diário de estranhos no prédio, que é de uso residencial.”
O construtor, diante do enorme movimento, abusou de seu direito de votar e impôs aos compradores/vítimas a contratação de um síndico profissional e de porteiros, mesmo contra a vontade de 9 condôminos que explicaram que um deles poderia assumir a função de síndico e que não eram necessários 4 porteiros para cobrir a portaria 24h. Sem porteiros, como poderia o construtor receber os hospedes e viajantes? Quem controlaria as chaves dos 10 apartamentos? O fato é que os moradores estão sendo lesados ao arcar com a estrutura de funcionários destinada ao atendimento da exploração comercial da construtora que em busca de lucro de qualquer forma.
O ladrão ou assaltante não precisa ser um gênio para enganar, fazer um cadastro falso e ter acesso aos condôminos por meio desses aplicativos. Terá a chave do prédio bastando pagar uma diária. Será que os defensores da “modernidade sem responsabilidade”, somente após os arrastões e demais crimes – filmados pelas câmeras e sistemas de segurança – perceberão que um prédio residencial não tem a estrutura de um apart-hotel que possui recepcionistas e seguranças especializados para impedir ou inibir, tais crimes ou abusos?
Os artigos 1.332 e seguintes do Código Civil são claros ao conceder poderes a 2/3 dos condôminos para limitar e regulamentar o uso da edificação, não tendo nenhum coproprietário direito de fazer o que bem entende com seu apartamento. Se deseja fazer locação diária basta comprar uma casa ou um apart-hotel. Agora, se a construtora vende apartamentos com a convenção que define o uso residencial familiar, ninguém compraria para locação diária. Se o construtor desde do início desejasse fazer um prédio para ser locado diariamente, deveria então agir com lealdade e dizer isso para os pretendentes à compra. Entretanto, mas não o faz porque sabe que a maioria nem entraria no prédio para conhecer o apartamento.
O crescimento desse tipo de hospedagem retira do mercado centenas de apartamentos que deveriam ser locados por longo prazo, gerando a escassez e o aumento dos aluguéis para quem reside na cidade. Além disso gera desemprego no setor hoteleiro, o qual já enfrentar uma crise diante da grande oferta de unidades. Esse efeitos negativos foram comprovados em Paris, Barcelona, Nova York, Veneza, Miami, Berlim, Palma de Maiorca, San Francisco, Amsterdã e diversas cidades que acabaram criando restrições ao Airbnb que lucra cada vez mais para a sua sede americana, deixando de gerar empregos onde ele fatura.
Esse artigo foi publicado no Jornal Diário do Comércio
Kênio de Souza Pereira
Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB Federal
Conselheiro da CMI-MG e do SECOVI-MG
Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário
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