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DECRETO DÁ MARGEM PARA PRESTADORES DE SERVIÇOS TRABALHAREM EM BELO HORIZONTE DURANTE A PANDEMIA

Redação do Decreto se limitou ao comércio e às atividades que propiciam aglomeração              

     Tem gerado grande polêmica os dois Decretos do Prefeito Alexandre Kalil, que têm como objetivo reduzir o risco de propagação do Covid-19, por meio do distanciamento social, pretensão que deve seguir as previsões da Lei Federal nº 13.979, de 8/02/220 que institui as Medidas de Emergência.  O grande problema decorre da publicação do Decreto nº17.328, de 08/04/20, que tem preocupado centenas de profissionais e empresas com a divulgação pela mídia de que tudo deverá fechar no dia 09/04, aumentando assim a aflição de trabalhadores que precisam faturar alguma coisa para sobreviver. A situação tende a se agravar com empresas perdendo as condições de pagar salários, aluguéis, impostos e demais despesas, em especial as lojas de rua, as localizadas nos shoppings centers e as demais atividades como academias, clubes e bares, propensas a aglomerar pessoas que foram elencadas no art. 2º do referido Decreto.                  

     Ao analisarmos tecnicamente o Decreto nº 17.328, de 08/04/20, que revogou o anterior, percebe-se que a principal mudança se encontra no seu artigo 1º, com a ampliação das atividades essenciais no art. 6º, além da criação do art. 7º, que esclarece que algumas atividades podem funcionar com medidas de restrição e controle para evitar o contágio e propagação do COVID-19. Vejamos o que determina os artigos: 

Art. 1º – A partir de 09 de abril, ficam suspensos, por prazo indeterminado, os Alvarás de Localização e Funcionamento – AFLs – de todas as atividades comerciais no âmbito do Município de Belo Horizonte, considerando as exceções previstas neste decreto.

Art. 7º – As atividades não incluídas nas restrições deste decreto, deverão funcionar com medidas de restrição e controle de público e clientes, bem como adoção das demais medidas estabelecidas pelas autoridades de saúde de prevenção ao contágio e contenção da propagação de infecção viral relativa ao COVID-19.”                

     O artigo 6º, especifica com clareza, para não deixar dúvidas, sobre quais os serviços que não sofreram a aplicação do Decreto. Neste sentido, são: “serviços de saúde, farmácias, laboratórios, clínicas, hospitais, óticas, supermercados, hipermercado, padaria, sacolão, mercearia, hortifruti, armazém, açougue, posto de combustível para veículos automotores, lojas de materiais de construção civil, agências bancárias, lotéricas e correios, incluindo aquelas em funcionamento no interior de shoppings centers, centros de comércio e galerias de lojas…” E ainda, orienta que, embora estejam excluídos do alcance do Decreto, ou seja, não terão seus alvarás de funcionamento suspensos, devem exercer suas atividades  adotando as medidas estabelecidas pelas autoridades de saúde de prevenção ao contágio e contenção da propagação de infecção viral relativa ao COVID-19”.                

     Já o artigo 7º, menciona as atividades que NÃO foram especificadas pelo Decreto, portanto são deduzidas como excluídas, para orientar que, apesar de não terem sido mencionadas, ainda assim, se deve agir nelas com os cuidados de prevenção ao contágio. Essa necessidade da norma se justifica ante a possibilidade de, ao redigir o texto normativo, não terem sido mencionadas todas as atividades existentes, o que criaria uma lacuna no cumprimento do Decreto.  Diante disso, não se admite entender que o art. 7º se aplica aos negócios citados no art. 6º, pois haveria redundância que fere a lógica legislativa.                  

     A grande mudança contida no novo Decreto está no art. 1º, que determinou a “suspensão de todas as atividades comerciais”, sendo que o Decreto nº 17.304, de 18/03/20, suspendeu os alvarás somente das “atividades com potencial de aglomeração de pessoas”, citando em especial as casas de shows, casas de festas, bares, parques, etc., em onze incisos. O novo Decreto ampliou esse rol para quinze incisos passando a incluir circos, autorizações de feiras em propriedades e eventos em propriedades e logradouros públicos. 

LEI FEDERAL PROVISÓRIA É QUE CONCEDEU PODER (LIMITADO) AO PREFEITO                   

     Devemos atentar que o Prefeito está autorizado a agir dentro dos limites da Lei nº13.979, de 08/02/20, que dispõe sobre o Estado de Emergência, que é temporário, no qual estabelece, detalhadamente, no art. 3º, que as medidas de enfrentamento podem impor o isolamento e a quarenta, o que impede que as pessoas que não se enquadram sejam atingidas. Vejamos o que diz a lei federal sobre isso: 

“Art. 2º – Para fins de separação do disposto neste Lei considera-se:

I – isolamento: separação de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou propagação do coronavírus; e

II – quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou propagação do coronavírus.”                  

     Portanto, o município carece de autorização legal para impor restrições a quem esteja em perfeita saúde e que deseje trabalhar cumprindo as recomendações de higienização e prevenção que estão expressas na Portaria SMSA/SUS-BH nº 0097/2020. 

OBJETIVO É EVITAR AGLOMERAÇÃO E EXIGIR MEDIDAS DE HIGIENIZAÇÃO                  

    Dos oito artigos tratam do tema do Decreto, seis descrevem como foco evitar a aglomeração e, quanto aos estabelecimentos autorizados a funcionar os condiciona a adotarem as “medidas estabelecidas pelas autoridades de saúde de prevenção ao contágio e propagação de infecção viral relativa ao COVID-19”. Essa expressão é reproduzida em quatro artigos (3º, 4º, 6º e 7º).                  

    Esse posicionamento está em sintonia com as normas do Governo de Minas Gerais, publicadas no dia 22/03/20 (Deliberação do Comitê Extraordinário COVID-19, nº 17), no art. 6º, que estipulam que os municípios “devem suspender serviços, atividades ou empreendimentos, públicos e privados, com circulação ou potencial aglomeração de pessoas”, em especial com “público superior a trinta pessoas”. O Governo de Minas Gerais frisou no “parágrafo único: A suspensão de que trata o caput não se aplica: I – às atividades de operacionalização interna dos estabelecimentos comerciais, desde que respeitadas as regras sanitárias e de distanciamento adequado entre os funcionários”.                  

      Portanto, levando em consideração que as normais legais que limitam os atos e a liberdade devem ser interpretadas literalmente, de forma restrita, o que leva à obviedade de não se permitir a interpretação extensiva ou ampliada dos vocábulos, fica evidente que o Decreto 17.328, se limita a suspender as atividades comerciais. Tem como objetivo maior impedir que as lojas e estabelecimentos semelhantes recebam muitas pessoas, o que é mais comum nas lojas de frente para as vias públicas.                  

     Além das atividades comercias, delimitou também outros negócios elencados nos quinze incisos do artigo 1º. A regra do Direito Brasileiro é o que não é proibido, de forma clara, é permitido e isso está contido no preceito constituição do inciso II, do art. 5º da CF. Além disso, ao analisarmos o art. 136 da Constituição Federal (CF), o Decreto Municipal, caso seja submetido a uma Ação, pode ser julgado inconstitucional se for entendido como um Decreto de Estado de Defesa, que somente o Presidente da República pode decretar, após ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional.                  

     Conforme a regra de interpretação das normas jurídicas, conforme foi redigido, consiste numa impropriedade entender que o Decreto 17.328/20 atinge os escritórios em geral (contadores, advogados, engenheiros, arquitetos), os autônomos, os corretores de imóveis, administradores, enfim, vários tipos de prestadores de serviços que não geram grande fluxo de pessoas como por exemplo, um salão de beleza, onde os funcionários precisam tocar as os clientes constantemente.  

DECRETO SE RESTRINGE AO COMÉRCIO E ÀS ATIVIDADES CITADAS NO ART.  1º                   

     Para confirmar que o Decreto 17.328/20 não atinge esses prestadores de serviços, basta constatar a existência do novo artigo 7º, que não constava no Decreto 17.304, de 18/03/20, que era mais limitado. Ao não incluir na redação do artigo 1º do Decreto, de forma clara a suspensão das atividades empresariais, de prestação de serviços, industriais, dos profissionais autônomas, etc. cabe aos munícipes atender exatamente ao que constou no Decreto, ou seja, a proibição das atividades mercantis, no caso, que se limitam ao comércio. E assim, por ser limitada a restrição, foi inserido no Decreto o seguinte: 

Art. 7º – As atividades não incluídas nas restrições deste decreto, deverão funcionar com medidas de restrição e controle de público e clientes, bem como adoção das demais medidas estabelecidas pelas autoridades de saúde de prevenção ao contágio e contenção da propagação de infecção viral relativa ao COVID-19.                  

     O Sr. Prefeito disse para os veículos de comunicação que conforme o Decreto 17.328/20, que tudo estaria fechado, exceto os serviços essenciais. Mas, o fato é que se o art. 1º tivesse essa dimensão com a expressão “atividades comercias”, ficaria sem sentido o art. 7º, ele poderia ser retirado, pois simplesmente repetiria o comando final citado no art. 6º. Se o objetivo era fechar tudo, deveria o Decreto ser mais preciso na redação e citar todas as atividades, além das comerciais. 

CÓDIGO CIVIL PROTEGE CONTRA A INTREPRETAÇÃO EXTENSIVA DO DECRETO                  

     A existência do art. 7º, deve ser entendida com uma visão racional, pois só é justificável para respaldar a não restrição de atividades, como a de escritórios, pois nesses há poucas pessoas, sendo comum nem ser uma empresa, nos termos do Código Civil, pois vários exercem apenas atividade intelectual, como os advogados, engenheiros, contadores, dentre outros profissionais que trabalham sozinhos ou com uma secretária. Essas atividades passam longe de serem comerciais e assim não são atingidas pelo Decreto, conforme podemos verificar no art. 966 do Código Civil:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

     Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa. 

CONSTITUIÇÃO FEDERAL LIMITA PODER DO MUNICÍPIO                  

     Cabe ao município regulamentar as atividades em geral, o que implica ordenar o funcionamento dos negócios e a ocupação do uso do solo, conforme inciso I, do art. 30 da Constituição Federal: Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local. Em nenhum dos nove incisos do art. 30 consta a autorização para o município impedir que as pessoas trabalhem.                  

     Tal autoridade está prevista no art. 136 da CF, por meio de Decreto de Estado de Defesa, que somente o Presidente da República pode decretar. Entretanto, pode o município regulamentar em prol da saúde medidas razoáveis, e no caso da pandemia, nos termos da Lei nº 13.979, de 08/02/20, que dispõe sobre o Estado de Emergência, tendo esse entendimento sido confirmado em recente decisão do Ministro Alexandre de Morais do STF, que frisou que os Estados e Municípios podem agir dentro dos limites constitucionais.                  

     Obviamente, sem trabalhar as pessoas perecerão, o desespero de ver a família passar forme gerará traumas, atos de violência e mortes. Diante disso, a Constituição Federal estipulou como cláusula pétrea, os “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, que impõem:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

 XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.                  

     Portanto, não existe lei que possa realmente impedir a pessoa de obter o seu sustento da sua família, podendo o Decreto limitar-se a impor regras que venham a proteger a população, de maneira criteriosa, sem exageros, já que entre os cientistas e especialistas não há consenso sobre a gravidade do COVID-19, havendo opiniões divergentes de grandes autoridades.                  

    O Decreto reitera em quatro artigos a obrigação de todos evitarem aglomeração e adotarem as medidas de prevenção que foram detalhadas, de maneira profissional pelos médicos da Secretaria Municipal de Saúde, no dia 07/04/20, por meio da Portaria SMSA/SUS nº 0097/2020, sendo esse o foco incontestável e que é aceito pela população que precisa trabalhar.                   

     Os limites da legalidade, que estão contidos no princípio constitucional de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, impossibilitam qualquer penalização contra aqueles que não são do comércio venham a trabalhar, pois a coerção por meio de fiscais ou da guarda municipal poderá configurar o Crime de Abuso de Autoridade, previsto na Lei nº13.869/2019. Os prestadores de serviços não estão citados no art. 2º, do Decreto 17.328/20, o que é lógico, por não gerarem aglomeração.                  

     Diante disso, podem trabalhar forma criteriosa, em ambientes que permitam a distância entre os clientes de no mínimo um metro. Poderá o Poder Público fiscalizar e exigir o cumprindo dos 16 incisos do art. 1º da Portaria, que impõe “as boas práticas para a contingência à COVID-19”, pois inúmeras pessoas precisam de rendimentos para manter sua alimentação, habitação e dignidade.

 

Belo Horizonte 10 abril 2020


Esse artigo foi publicado o Jornal Diário do Comércio

 

Kênio de Souza Pereira

Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB Federal

Conselheiro da CMI-MG e do SECOVI-MG

Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário

kenio@keniopereiraadvogados.com.br