Cobrança maliciosa pode gerar processo penal
Durante muitos anos os Tribunais de Justiça condenavam os réus nas ações de cobrança movidas por associações de moradores ou de determinado loteamento fechado a pagarem as contribuições associativas, chamadas erroneamente de “taxas de condomínios”, sob a alegação de que estes se beneficiavam dos serviços de controle de portaria, da segurança e da limpeza que foram implantados no loteamento. Diante dessa ideia, proliferaram associações com poucos associados que se aproveitando da falta de conhecimento dos proprietários dos lotes passavam a enviar centenas de boletos cobrando valores daqueles vizinhos que nem sabiam da existência da referida associação. Entretanto, muitos acabavam pagando com medo de serem processados e terem que gastar mais para se defenderem na Justiça, sendo óbvio que tal pagamento decorrente de coação não corresponde ao ato de se associar.
Essa farra perdurou por muito tempo, até que centenas de processos de cobrança passaram a ser analisados pelos Juízes, Desembargadores e Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que perceberam a má-fé de supostos “Loteamentos Fechados” ou “Condomínios Fechados” sustentados por cobranças irregulares e sem fundamento. Em vários casos se tratavam de loteamentos comuns, nos quais a maioria dos compradores nunca imaginaram que seriam surpreendidos com boletos de associação que inexistia quando fizeram a aquisição.
Diante desses abusos que denunciamos a partir de 2004 em nossos artigos, nos quais alertamos que os magistrados ao condenarem os proprietários a pagar as contribuições associativas com base na alegação de enriquecimento sem causa, sob a justificativa que esses eram beneficiados pelos serviços de portaria e segurança – mesmo não os tendo solicitado – estimulou o crescimento de associações irregulares criadas por pequenos grupos em vários loteamentos.
Previmos sobre a tendência do STJ desobrigar o pagamento de quotas de associações de loteamentos que eram fechados de maneira irregular, conforme pode ser verificado em vários artigos, dentre eles, “Adquirir lote em condomínio fechado requer reflexão”, publicado no Boletim do Direito Imobiliário nº 34 (nov/2004). Vários foram os debates que participamos alertando os juízes de que a superficialidade na análise de ações de cobrança montadas de maneira maliciosa, que geravam condenações injustas por falta de constatação de que os réus nunca participaram da associação. Frisamos isso em algumas palestras, dentre elas “A polêmica da legalidade da cobrança da taxa em condomínio fechado” no auditório da OAB-MG, em 06/05/09, no II Seminário de Direito Urbanístico da OAB-MG, no qual afirmamos: “A maioria dos condomínios fechados não possui documentação adequada, sendo simples loteamentos sob o ponto de vista jurídico”.
Demorou 11 anos para o Poder Judiciário perceber que a boa-fé dos magistrados estava sendo utilizada para gerar lucro para alguns grupos. Em 2015 aconteceu o que previmos. Houve uma grande mudança que acabou com a farra das sentenças condenatórias proferidas sem verificar a existência de uma convenção registrada no Ofício de Registro que estipulasse, de maneira clara e notória, a obrigação de pagar taxa de condomínio em determinado loteamento fechado ou a real intenção de se associar daqueles que eram surpreendidos com as ações de cobrança.
STF ESCLARECEU QUE ASSOCIAÇÃO NÃO É CONDOMÍNIO
Em março de 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme Recursos Especiais nº 1.439.163-SP e n.º 1.280.871/SP, julgados pela Segunda Seção, consagrou que nesses casos deve prevalecer a disposição do artigo 5º, inciso XX, da Constituição Federal que determina, “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”. Dessa forma, o STJ deixou de utilizar a tese do “enriquecimento sem causa” que fundamentava a cobrança e passou a valorar a liberdade do proprietário se associar ou não, além da boa-fé, pois ninguém é obrigado a pagar pelo que não contratou.
Os Recursos Especiais nº 1.439.163-SP e n.º 1.280.871/SP, têm orientado os magistrados dos Tribunais Estaduais, visto que o julgamento foi realizado nos termos do artigo 543-C do Código de Processo Civil, no qual seu resultado passa a ser a diretriz para as futuras decisões, tendo como ponto central a fixação da tese de que “as taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou os que a elas não anuíram”.
Diante da nova posição unificada das duas Turmas do STJ, somente os proprietários de casas e terrenos de loteamentos fechados que se associaram formalmente à associação ou que conste na matrícula no Ofício de Registro de Imóveis uma convenção que estabelece de forma clara o rateio das despesas pelos serviços prestados, são obrigados a pagar a taxa associativa. Sobre os reflexos desse aprimoramento jurisprudencial, foi publicado em 2015, no BDI nº 18 o artigo “ STJ inviabiliza condomínios fechados com documentação precária e guaritas em ruas”, que esclarece sobre o alerta que fazemos neste artigo sobre o aspecto penal.
NOVAS ASSOCIAÇÕES PODEM RESPONDER CRIMINALMENTE
O formato de condomínios fechados de casas surgiu com o artigo 8º da Lei nº4.591/64 que regula a incorporação em condomínios, tendo ocorrido o lançamento de empreendimentos que, diante da ausência de uma lei específica sobre loteamento fechado, foram evoluindo sem a devida regulamentação. Diante da inexistência da previsão legal de Condomínio de Lotes, os loteadores elaboraram regulamentações, sendo algumas devidamente registradas o Ofício de Registro de Imóveis e outras somente nas escrituras e diante da necessidade de organização foram criadas associações desde do início do loteamento, com os devidos procedimentos jurídicos adequados. Entretanto, ocorreram desvios com grupos de donos de lotes que seu uniram de forma amadora e implantaram associações irregulares que resultaram litígios na área cível. Houve tantas demandas judiciais que motivaram o Superior Tribunal de Justiça julgar, em 2015, a questão de maneira a pacificar o entendimento sobre as cobranças que têm respaldo legal e as demais que são ilegais e abusivas.
Ficou claro então que “as taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou os que a elas não anuíram”, sendo essa, desde 2015, a posição oficial do Poder Judiciário ao analisar a questão sob os aspectos do Direito Civil. Para evitar a continuação dos problemas por falta de uma legislação específica, em 2017, com a Lei º 13.465, foi introduzido no Código Civil, o art. 1.358-A, que passou a prever o Condomínio de Lotes, gerando maior segurança ao setor imobiliário.
Entretanto, apesar da pacificação do entendimento jurisprudencial e da nova lei de 2017, continuam a surgir novas “associações oportunistas” que criam esquemas para forçar o pagamento das contribuições em loteamentos que não foram concebidos para serem condomínios fechados.
Diante da intenção deliberada de criar uma associação para induzir proprietários de casas e lotes que nunca se associaram a pagar o que não tem base legal, especialmente depois do STJ em 2015, com o julgamento de recurso repetitivo, ter liquidado qualquer dúvida sobre a questão, percebe-se que essas “novas aventuras jurídicas” podem acarretar processos penais contra seus criadores e gestores dessas associações. Isso, porque, diante do modus operandi, aqueles que se organizam para coagir quem não é associado a pagar taxa associativa, pode estar cometendo vários crimes, uma vez que não restam mais dúvidas sobre a proibição dessa prática. Pelo visto, o Código Penal passará a fazer parte da história de algumas associações de condomínios e loteamentos fechados e em breve veremos os responsáveis que insistem em ignorar a posição do STF sendo condenados na área criminal, pois não poderão alegar que desconheciam o que estavam fazendo ao enviar cobranças, fazer ameaças e promover a negativação do crédito de pessoas que não assinaram o termo de associação.
Esse artrigo foi publicado no Jornal Diário do Comércio
Kênio de Souza Pereira
Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB Federal
Conselheiro da CMI-MG e do SECOVI-MG
Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário
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