Imaginamos que, ao se comprar uma unidade na planta ou um lote, caso este não venha a ser entregue no prazo contratado, que, ao menos, o comprador terá direito a receber o que pagou, devidamente corrigido e acrescido de multa rescisória diante da evidente culpa da construtora ou da loteadora. É por isso que ao assinar o contrato o comprador não percebe as cláusulas maliciosas que visam impedir que ele tenha acesso ao Poder Judiciário e que estabelecem a arbitragem mediante despesas absurdas, como forma de garantir o lucro da incorporadora, construtora ou loteadora que desaparece com os recursos que deveriam ser aplicados no empreendimento.
Por ter sido criada com o propósito de favorecer a desobstrução da Justiça e tornar mais rápida a solução do conflito, a cláusula que estipula o compromisso arbitral para julgar o conflito decorrente do contrato de compra e venda não desperta desconfiança. Mas, é justamente nessa condição que a má-fé se aproveita para estipular três árbitros em Câmara de Arbitragem em outro estado, distante do local do empreendimento, de maneira a gerar custos tão elevados que acabam favorecendo indevidamente o incorporador, construtor ou loteador inadimplente.
Na prática, as vítimas desses contratos leoninos têm se surpreendido ao constatarem que o procedimento arbitral em determinadas Câmaras de São Paulo, custa entre R$130 mil a R$200mil, sendo inserido no contrato a Câmara Arbitral escolhida “a dedo” pelo construtor. Dessa forma, a vítima que não recebeu a unidade vendida na planta, se vê “forçada” a pagar antes essa despesa para a Câmara Arbitral, além dos gastos com os honorários de seu advogado, passagens aéreas e hospedagem, inclusive das testemunhas, para poder requerer a devolução dos valores retidos indevidamente pela construtora ou loteadora que não concluiu a obra.
Exemplificando, se a unidade hoteleira foi vendida por R$400 mil, não tendo sido entregue em fev/2014, conforme ocorreu com vários hotéis lançados em 2011 para a Copa do Mundo de junho de 2014, como o Site Savassi, em Belo Horizonte, para receber o valor de R$200 mil pago à construtora há seis anos, o comprador pagará R$174.625,00 à Câmara Arbitral Paulista. Se fosse na Caminas em BH, o custo de um árbitro para resolver a questão seria R$15.000,00.
A jogada consiste em criar uma barreira para garantir o calote da construtora, pois o comprador, ao ser forçado a distribuir o processo na Justiça Comum, é surpreendido com a contestação que alega que o Poder Judiciário é incompetente para julgar a ação de rescisão cumulada com a cobrança dos valores que o construtor insiste em não devolver. O mais incrível é que há magistrado, talvez sobrecarregado com milhares de processos, que não se atenta a esse golpe, pois há caso de decisão judicial que determina que cabe somente a Câmara Arbitral julgar o processo, ignorando que o alto custo de R$170 mil para pagar os três árbitros consiste numa afronta à Constituição por impedir a acesso à Justiça.
Tem ficado claro o propósito dessas construtoras criarem situações para não devolverem o dinheiro, pois em alguns casos o valor angariado para o empreendimento, acaba sendo aplicado em outros negócios, afrontando o patrimônio de afetação que determina que os recursos dos compradores e de empréstimo contraído com o banco devem ser aplicados somente na obra vinculada ao crédito.
CONTRATO DE COMPRA E VENDA PODE SER MEIO DE PRÁTICA CRIMINOSA
Um caso que ensinou o mercado imobiliário a desconfiar do propósito de algumas construtoras, foi amplamente divulgado pela mídia e publicado em 25/01/18, no site do TJMG, sob o título: “TJMG Aplica Medidas Cautelares a Empresários”. Trata-se de um processo criminal (nº 0913141-93.2016.8.13.0024) inédito, que motivou os magistrados a darem ampla divulgação a fim de precaver as pessoas para buscarem assessoria jurídica antes de assinarem contratos.
No julgamento realizado pelo TJMG, no dia 26/08/20, contra a Incorporadora Maio e a Construtora Paranasa, que não entregaram mais de 400 unidades hoteleiras na Capital mineira, que deveriam funcionar desde março de 2014, a 12ª Câmara Cível, sabiamente rejeitou o argumento dessas rés que insistem em dizer que o Poder Judiciário é incompetente para julgar tais processos. Os Desembargadores entenderam, em favor do comprador, que “ser pretenso investidor não afasta a sua qualidade de consumidor e a incidência do Código de Defesa do Consumidor”. O acórdão ressaltou a decisão do Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 1.189.050, da 4ª Turma, que “não há incompatibilidade entre os arts. 51, VII, do CDC e o art. 4º, §2º da Lei n. 9.307/96”
Na arbitragem, por não ser público o procedimento, não é possível consultar os processos para saber previamente sobre ações judiciais que são motivadas por maus empresários. Esse sigilo contribui para o desconhecimento dessas práticas criminosas que visam dificultar a devolução do dinheiro que pertence ao comprador.
É importante que os magistrados fiquem alertas sobre o uso imoral da cláusula arbitral, que leva vários compradores a perderem seu direito em decorrência da prescrição. Esse instituto tem sido desvirtuado para travar o andamento de milhares de processos mediante os agravos e recursos das construtoras que afrontam a dignidade da Justiça ao argumentarem que os magistrados dos Tribunais de Justiça e do STJ não podem julgar esses processos pelo fato de constar no contrato de compra e venda cláusula de compromisso arbitral, a qual é inserida de maneira a não ser percebida pelo comprador, fato esse que a torna nula por ferir o art. 4º da Lei 9.307/96, o CDC e a boa-fé.
Esse artigo foi publicado no Jornal Diário do Comércio.
Kênio de Souza Pereira
Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB Federal
Conselheiro da CMI-MG e do SECOVI-MG
Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário
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