A lei autoriza os contratantes escolherem os índices que irão reajustar o aluguel anualmente, sendo o principal objetivo restabelecer o poder de compra da moeda, evitando que o valor do aluguel fique fora do preço de mercado. Entretanto, diante da enorme variação dos índices, o que já perdura há nove meses, constata-se que em alguns casos a manutenção do IGP-M causa desequilíbrio contratual. O IGP-M/FGV – que é utilizado pelo Banco Central como referência da inflação oficial – acumulou mais de cinco vezes a variação de 5,20% do IPCA/IBGE (28,94% em março/20 a fev/21). Por essa razão, a cada dia aumentam os casos de inquilinos solicitando renegociação do valor e a troca do IGP-M por outro índice como o IPCA ou outros que também estão variando em torno de 6% ao ano (IPC/Fipe 6,35%, INPC/IBGE 6,22% e INPC-DI/FGV 4,83%), ou seja, em torno de 1/5 da variação do IGP-M que está subindo em função da desvalorização do real perante o dólar, além da disparada dos preços das commodities.
Grande parte dos locadores tem realizado acordos para manter os imóveis residenciais e comerciais ocupados, tendo como parâmetro o valor de mercado. Dessa forma, é ajustado como valor corrigido o preço atualmente pedido por imóveis vazios, semelhantes ao locado, disponíveis para locação. Essa negociação é complexa, pois sendo realizada de maneira informal ou amadora, pode gerar polêmica na contagem do prazo de três anos que viabiliza a Ação Revisional do Aluguel, o que exige uma consultoria jurídica para proteger o locador ou o locatário, conforme o caso.
O locador tem o direito de impor a aplicação do reajuste, mas em decorrência do IGP-M ser quase 400% superior à inflação oficial medida pelo IPCA, deve agir com prudência se o cálculo resultar num valor acima do preço de mercado do imóvel.
DESCONTO PROVISÓRIO NÃO PODE INVIABILIZAR REVISÃO TRIENAL
Diante do desaquecimento da economia existente antes da pandemia, que se agravou a partir de abril de 2020 com o impedimento de inúmeras atividades funcionarem para combater a contaminação pelo Covid-19, milhares de inquilinos e locadores fizeram descontos pontuais e provisórios, para evitar a inadimplência. O desconhecimento sobre por quanto tempo perdurariam as restrições resultou em pagamentos confusos de aluguéis. Diante dessa situação inédita, o magistrado, ao avaliar uma Ação Revisional de Aluguel baseada no art. 19 da Lei do Inquilinato, referente ao valor pago provisoriamente no decorrer de 2019 e 2020, deverá considerar que tais pagamentos não configuraram um novo acordo, se não corresponderem ao preço de mercado. Esses pagamentos com descontos parciais e temporários não deverão ser vistos como impeditivos para a procedência da pretensão do inquilino ou do locador, à revisão do aluguel para que corresponda ao valor atual de mercado. Se nos últimos três anos não ocorreu um novo acordo que efetivamente tenha contemplado o preço de mercado, o ideal é o magistrado deferir a perícia e ao conferir que há desequilíbrio entre o valor pago e o apontado pelo perito, julgar procedente o pedido revisional.
As pequenas reduções ou descontos provisórios que podem ser considerados meros arredondamentos do valor oficial do aluguel, não podem ser considerados um acordo para reiniciar a contagem de três anos para a propositura da Ação Revisional.
PERÍCIA INDICARÁ QUEM TEM RAZÃO
A perícia, ao apurar que o valor atual está fora do preço de mercado, deixará evidente que a parte que fez o requerimento, seja locador ou inquilino, tem justo motivo para recorrer ao Poder Judiciário para ser restabelecido o valor justo, ou seja, o preço de mercado. Não se deve admitir que alguém leve vantagem com a pandemia e isso deve ser a prioridade em prol da Justiça e da boa-fé.
Não se mostra razoável o Judiciário, diante das confusões criadas por uma economia instável, agravada pela pandemia, ignorar que neste momento atípico, deve prevalecer o direito de estabelecer o preço de mercado, devendo ser desprezados ajustes pontuais e provisórios que não resultaram no efetivo valor de mercado. Caso o valor de mercado tenha sido obtido, não será apontado o desequilíbrio do valor pelo perito judicial.
Por outro lado, sendo constatado pelo perito que o valor repudiado pelo autor na petição inicial consiste no preço de mercado, restará ao juiz decidir pela improcedência da Ação Revisional, por inexistir no momento da propositura do processo motivo para que ocorresse a revisão do preço.
IMÓVEIS INDUSTRIAIS E COMERCIAIS DE GRANDE PORTE: TROCA DO ÍNDICE
Há também milhares de locações que não estão aptas a sofrerem uma Revisão do Aluguel com base no artigo 19 da Lei 8.245/91, por terem sido iniciadas ou revisadas dentro do processo de Ação Renovatória, há menos de três anos.
Diante do aumento exagerado do IGP-M, na maioria dos casos, pode o inquilino optar por desocupar o imóvel caso não consiga fazer um acordo com o locador. Essa alternativa é mais tranquila quando se trata de uma locação residencial, pois não implica em grandes despesas com a mudança.
Todavia, sendo a locação comercial ou industrial, onde o inquilino possui contrato de longo prazo, sujeita a multa rescisória expressiva, tendo investido elevadas quantias com reformas ou construções, além da criação do ponto comercial, torna-se muito difícil decidir pela mudança. Os prejuízos podem ser enormes, com a perda dos investimentos, das luvas e da clientela, havendo caso da mudança inviabilizar a continuidade do negócio.
RECLAMAR SOMENTE SE ALUGUEL SUPERAR VALOR DE MERCADO
Grandes indústrias que ocupam galpões logísticos ou plantas industriais, supermercados e lojas de grande porte têm tido maior dificuldade em renegociar o aluguel que esteja acima do valor de mercado, pelo fato dos locadores saberem que tais inquilinos possuem elevada capacidade financeira.
Se a aplicação do IGP-M não atingir o preço de mercado, não há pelo que o inquilino reclamar. Mas, ficando evidenciada a inadequação do IGP-M que tem sido influenciado pela disparada do dólar, por produtos e serviços que não fazem parte da realidade da sociedade brasileira, poderá vir o Judiciário apreciar o requerimento de aplicação de outro índice mais adequado à manutenção do valor de compra da moeda.
PANDEMIA NÃO PODE FAVORECER VANTAGEM EXCESSIVA
A aplicação de um índice que se mostra em desacordo com a realidade interna do país, que esteja completamente distanciado dos demais índices oficiais que medem a inflação, os quais são utilizados como parâmetro para o Governo Federal e o Banco Central conduzir a economia, pode vir a comprometer ou até tornar inviável a atividade do inquilino desenvolvida no imóvel locado. A diferença de mais de 20% entre o IGP-M e os demais índices gera um acréscimo inesperado no valor de imóveis comerciais de grande porte, que gera um peso maior na pandemia, que resultou no fechamento de milhares de empresas.
A aplicação dessa variação excepcional do IGP-M é aceitável apenas se não ultrapassar o valor de mercado, pois o que se defende não é beneficiar o inquilino em prejuízo do locador, mas evitar que este obtenha vantagem injustificável, fora das regras do mercado. A boa-fé, a razoabilidade devem prevalecer para evitar o enriquecimento sem causa.
Independentemente do que estipula a Lei do Inquilinato, que limita a revisão a cada três anos, o que se trata neste artigo são dos casos de evidente desequilíbrio nesse período inédito de pandemia e da necessidade de se evitar que qualquer contratante venha a obter vantagem excessiva. Nesse caso, o Código Civil prevê que o magistrado pode corrigir o contrato que se apresenta desequilibrado, podendo em relação à situação imprevisível, até retirar a multa rescisória, caso o inquilino opte pela desocupação do imóvel que gera excessiva onerosidade, com extrema vantagem para o locador, nos termos do artigo 478. Quando ocorre uma situação em que a prestação devida supere o aceitável, gerando onerosidade excessiva, é possível requerer uma redução ou a mudança do índice, com base no artigo 480 do Código Civil.
RAZOABILIDADE E SABEDORIA PARA EVITAR UM LITÍGIO
O que qualquer contratante espera ao assinar um contrato de locação é que o índice escolhido mantenha o valor dentro da realidade, conforme o comportamento da economia e da inflação que têm como base os índices que são sempre bem semelhantes. Não era previsível que o IGP-M subisse mais de cinco vezes o percentual de 5,20% do IPCA/IBGE, o qual há décadas é utilizado como referência oficial de inflação.
Esse descolamento exagerado no decorrer do Plano Real (1994 a 2020) do IGP-M ocorreu em maior grau somente em 2002/3 (Eleição Lula) e agora em 2020/21, sendo portanto uma anomalia, pois não reflete a variação do mercado de locação nesses momentos. O imóvel é um ativo e o lógico seria remunerá-lo com o aluguel que fosse reajustado base no INCC ou CUB por representarem o custo de construção, sendo irracional reajustar essa remuneração com base na variação cambial ou das commodities internacionais com aço e soja que não têm nenhuma relação com os imóveis, mas que acabaram inflando o IGP e o IGP-M.
O fato é que os locadores em geral são acessíveis ao acordo, pois são bem assessorados por especialistas que pensam a longo prazo, considerando as questões processuais. O mercado imobiliário é cíclico e de tempos em tempos os índices variam de forma mais ampla, no máximo o dobro, ou seja, nunca ocorreu o distanciamento do quíntuplo como o verificado nesses últimos meses.
Por outro lado, os Fundos de Pensão ou os Fundos Imobiliários que têm regras de gestão mais rígidas, diante dos compromissos com os investidores, têm sido inflexíveis, motivando assim processos judiciais que buscam a mudança do índice ou a definição de um aluguel razoável, sendo desafiador conduzir esses processos diante das inúmeras nuances jurídicas e de mercado.
Belo Horizonte, 22 de março de 2021.
Esse artigo foi publico no jornal Mercado Comum Pag 136.
Kênio de Souza Pereira
Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-MG
Vice-presidente da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB Federal
Conselheiro do Secovi-MG e da Câmara do Mercado Imobiliário de MG
Diretor da Caixa Imobiliária Netimóveis –BH/MG.
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