Tem causado espanto que cada vez mais as pessoas achem normal enganar o outro, em levar vantagem, em distorcer os fatos, em se fazer de vítima para justificar porque fez mal a outra pessoa, seja na elaboração de um contrato, na venda de produto, na prestação de serviço ou numa reunião de condomínio. A tecnologia e o conhecimento evoluíram, mas também na mesma proporção os métodos e meios de enganar. Basta vermos no dia a dia as pessoas se negando a assumir compromissos por escrito, tentando impedir a gravação em vídeo da assembleia ou distorcendo o que acabaram de dizer, mesmo na frente de várias testemunhas.
Pode ser que escândalos como do Mensalão e do Petrolão tenham exposto a má-fé disfarçada pela dissimulação e falta de “vergonha na cara” de muitas autoridades e famosos que deveriam dar o exemplo, pois são privilegiados nessa nação de extrema desigualdade social. E, diante disso, influenciando de forma negativa a população, que ao invés de se constranger e passar a ser mais exigente com a conduta própria e alheia, se entregou ao desânimo e aceitação desse comportamento vergonhoso, aderindo a um novo modo de agir desonesto. Banalizou-se o mau-caratismo.
Na mais alta corte do país, tratando-se de políticos e dos amigos do rei, a regra é a prescrição. Essa anomalia tem contaminado a população de forma negativa e improdutiva.
ATOS ILEGAIS E INCONFESSÁVEIS SÃO PRATICADOS NORMALMENTE
Essa involução tem afetado os negócios e vemos cada vez mais vendedores prometendo o que não existe ou dizendo que pode ser realizado o que é ilegal ou inconfessável. Basta vermos a quantidade de pessoas que realizam alterações ilegais em seus imóveis após a construtora obter o Habite-se/Baixa de Construção como se não existissem leis e nem a convenção que sempre proíbe tais obras que afrontam o projeto original.
É ignorado, por aquele que faz o puxadinho no apartamento térreo, que os vizinhos do apartamento localizado acima são prejudicados com o aumento da sua insegurança em decorrência do novo telhado que facilita entrada de ladrão ou com a chaminé que surge do apartamento que não pode ser visto com uma casa, pois faz parte de um condomínio.
Há ainda aqueles que vendem vagas de garagem inexistentes e que anunciam o imóvel localizado num bairro valorizado, apesar de o registro imobiliário constar que o bairro é ao lado, que é mais simples. Vários são os casos de pessoas que compram a cobertura, mas depois descobrem que o documento se trata de um apartamento comum que o vendedor invadiu o telhado e fez uma reforma ilegal, tendo sido omitidas essas informações para o corretor de imóveis.
ÉTICA E MORAL ESTÃO CADA VEZ MAIS ESCASSOS
A ética, que consiste no conjunto de valores e princípios que determinam nossas condutas, deve ser mais valorizada, especialmente pelos governantes, autoridades e julgadores que devem nos proteger das situações injustas e decorrentes do abuso do poder. Conforme muito bem colocado por Mário Sérgio Cortella e Clóvis de Barros Filho quando abordam o tema sob o título “Não é a ocasião que faz o ladrão. Ela apenas o revela” – no vídeo que vale a pena ser visto no YouTube – vida nos coloca três dilemas: quero, posso e devo.
Há aquele que quer e pode e por isso acha que deve fazer. Outro pode, mas sabe que não deve fazer. Há coisas que devo, mas não quero. Sob essa perspectiva, a pessoa decide ser ladrão antes mesmo de surgir a ocasião, e, quando aparece a oportunidade, está pronto para aproveitá-la”. Desta forma, vários são os que se aproveitam para induzir o cliente a assinar um contrato que sabem que ocasionará dano, pois se importam apenas em obterem lucro, mesmo que seja injusto.
Fica, portanto, evidente que não é “a ocasião que faz o ladrão”, pois na verdade é a ocasião que propicia o crime, pois tal pessoa age por extinto, sem limites, por vontade própria. É um erro alegar que o poder corrompe, basta vermos que dirigir um carro consiste no poder de se locomover mais rápido e melhor do quem está a pé. O carro consiste numa arma na mão de uma pessoa desequilibrada, tendo este instrumento de poder que pode gerar danos expressivos ao rodar a 200 km por hora. Entretanto, ninguém multa o volante, o carro não anda sozinho. Quem é multado é o motorista, pois é ele que comete a infração.
POLÍTICOS REFLETEM PERFIL DOS CIDADÃOS QUE OS ELEGEM
O que nos dá esperança são as pessoas que têm diversas oportunidades para praticarem um deslize para levar vantagem ou obter lucro indevido, mas não o fazem, pois têm ética. Uma sociedade eticamente desenvolvida, por educação e por cultura, entende ser normal abrir mão de algum desejo para favorecer a convivência social, pois presam um bem maior, rejeitam a “esperteza”.
Valorizam a moral, pois agem de maneira correta e digna independentemente de estarem na frente de alguém ou de poderem ser expostas, pois mesmo sozinha a consciência determina o agir honestamente, a cobrar o valor justo e a pagar o que é devido espontaneamente, seja quem for o beneficiado. O agir ético e moral não cede à justificativa num dispositivo legal ou no contrato mal redigido para lesar o vizinho, o credor ou para levar vantagem financeira que qualquer cálculo matemático e a lógica deixam claro ser abusiva.
Agir com retidão é um dever, mas a cada dia temos visto isso ser relativizado, o que torna o convívio difícil. É preciso abdicar de alguns desejos, especialmente se nos envergonham. A família é a célula da sociedade, sendo essa reproduzida de forma ampliada nas reuniões condominiais e de negócios, sendo estranho essas pessoas acusarem os deputados e senadores por formarem o Congresso gerador de decepções, pois na prática, agem de maneira bem semelhante aos políticos que recriminam.
NÃO É A OCASIÃO QUE FAZ O LADRÃO. ELA APENAS O REVELA
É triste vermos nas assembleias de condomínio os responsáveis por elas fraudando a ata na frente dos vizinhos, distorcendo a verdade para lesar os outros, cobrando do vizinho mais do que ele realmente usufrui, não se corando ao serem flagrados, pois se tornaram sem vergonha ao perderem a moral e o senso de dignidade.
Belo Horizonte, 20 de abril de 2023.
O resumo desse artigo foi publicado em 02/12/2020 no Jornal Diário do Comércio
Texto maior publicado no BDI – Diário das Leis
Kênio de Souza Pereira
Diretor Regional de MG da ABAMI (Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário Conselheiro da Câmara do Mercado Imobiliário de MG e do Secovi-MG Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-MG (2010 a 2021)
Vice-presidente da Comissão Especial da OAB Federal (2019/2021)
Diretor da Caixa Imobiliária Netimóveis Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário