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Lei do Distrato imobiliário desestimula a compra de imóvel na planta e prejudica comprador

Tribunais podem não aceitar multas tão elevadas, mesmo que autorizadas por lei           

O distrato do contrato tem nova lei. Desde o dia 28/12/18 entrou em vigor a Lei nº 13.786/2018, que trata das normas de distrato na aquisição de imóveis em regime de incorporação imobiliária ou loteamento. O texto se mostra totalmente desequilibrado, pois afronta a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Código Civil e o resultado do julgamento do Resp. 1300418 analisado em regime de Recurso Repetitivo pelo STJ que julgou abusiva a postura das construtoras protelarem a devolução do dinheiro que pertence ao comprador. Além disso, ao permitir multa de até 50% sobre o valor pago pelo comprador, a nova Lei 13.786/18 despreza a jurisprudência do STJ que estabeleceu que a retenção pela construtora no caso de rompimento do contrato por arrependimento do comprador, seria em regra de 10% do valor pago, podendo subir até o limite de 25% no caso da construtora ter pago a comissão de corretagem e outras despesas que não pudessem ser cobertas por uma multa menor.                

Desde 2016 as construtoras e incorporadoras têm lutado para enfraquecer as leis que protegem o comprador de unidades na planta alguns os abusos que são praticados, como o descumprimento do prazo para entrega das unidades, a negativa de rescindir o contrato e a retenção de valores exagerados sobre a alegação de multa. O volume de processos motivados pelas construtoras é tão expressivo que motivou o STJ a criar Súmulas para facilitar o julgamento de problemas que não são criados pelos compradores.

A nova lei surgiu do lobby das incorporadoras e construtoras tendo como objetivo burlar os posicionamentos do STJ, como a Súmula 543, que garante ao consumidor a restituição imediata das parcelas pagas à construtora em caso de resolução do contrato. A Lei 13.786/18, no seu § 6º do artigo 67-A, concede à construtora o prazo de 180 dias, a contar da data de formalização da rescisão para o comprador receber seu crédito, ou seja, após a data de entrega, havendo o atraso, o comprador somente poderá requerer o recebimento do seu crédito após 12 meses a contar do dia marcado para a entrega da obra.  Além disso, afronta vários dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, dentre eles:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

        [….]

        IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

   XV – estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;

      [….]  

  • 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

        I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

        II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

        III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.           

A nova lei, no seu § 5º, do art. 67-A, ao estipular a multa de até 50% sobre o valor pago pelo comprador, acrescida de 6% do valor de corretagem sobre o custo total do imóvel, caso esse venha a desistir do negócio, criou uma situação em que o comprador poderá perder até 70% do que pagou, pois a comissão é calculada sobre o valor total do imóvel. A perda poderá ser ainda maior caso tenha que pagar 0,5% ao mês sobre o valor do imóvel a título de fruição.

PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO PODERÁ SER MANOBRADO PELA CONSTRUTORA           

Caso a construtora não deseje implantar o patrimônio de afetação para que reduza a garantia para os compradores que terão maior dificuldade para fiscalizar o empreendimento, poderá alegar que deixará de fazê-lo para que a multa rescisória seja menor para o comprador. Por outro lado, haverá construtora que visando poder cobrar uma multa lucrativa afetará o empreendimento em momento posterior, antes do Habite-se para se beneficiar do Regime Especial de Tributação que limita os impostos da obra em 4%.

HÁ SITUAÇÕES QUE A CONSTRUTORA LUCRARÁ SE ATRASAR A OBRA           

O desequilíbrio da lei, que afronta o art. 51, bem como o artigo 4º (que reproduz o princípio constitucional previsto no art. 5º, XXXII e no art. 170, inciso V da CF que estabelece o princípio do consumidor ser vulnerável) do Código de Defesa do Consumidor, fica evidente ao verificarmos que mediante o descumprimento do contrato, como no caso de não entregar a obra no prazo, a construtora é obrigada a pagar somente a indenização de 1% sobre a quantia paga pelo comprador, por cada mês de atraso, pós o transcurso de 6 meses de tolerância.           

Na maioria dos casos de atraso da obra, o valor decorrente da correção sobre o saldo devedor que a construtora receberá do comprador será muito superior à indenização de 1% sobre o valor pago que a construtora transferirá para o comprador. Ou seja, o atraso da obra dará lucro para a construtora!  Essa situação prevista no § 2º, do art. 35-A da nova lei afronta o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor que é aplicável à relação entre os compradores e as construtoras/incorporadoras.           

Há ainda a utilização maliciosa da expressão “obtenção do auto de conclusão da obra”, pois dá margem para a construtora criar mecanismo de aumento de juros e índice de correção após o Habite-se, ignorando ser impossível o comprador financiar junto aos bancos em geral com base apenas nesse documento.

CONSTRUTORAS QUE MOTIVARAM AS AÇÕES DE RESCISÃO           

Para tentar justificar a criação da lei, seus autores se basearam na falsa promessa de que haveria redução dos processos judiciais. Tal argumento é infundado, pois a lei não tem nenhum artigo que impeça as construtoras de protelar tanto a entrega do imóvel quanto a restituição dos valores pagos em caso de rescisão motivada por atraso da obra.           

O vício das construtoras não colocarem no contrato qualquer valor ou percentual de multa em benefício do comprador, caso descumpram o prazo de entrega, continuará a ser praticado, pois a lei não diz nada sobre o obrigatoriedade de constar tal multa e nem percentual de punição a ser aplicado contra a construtora. Entretanto, contra o comprador, a lei estabelece as multas de 25% ou 50% sobre o valor pago à construtora, além da comissão de corretagem, fruição e demais encargos como condomínio, IPTU, etc.

 JUIZ PODERÁ REDUZIR A MULTA POR SER DESPROPORCIONAL           

No caso da construtora descumprir o contrato ela deverá pagar a simplória “indenização” de apenas 1% sobre o valor já recebido do comprador, o que é insignificante diante a multa de 50% no caso do empreendimento sob o regime de patrimônio de afetação ou de 25% no caso de empreendimento não afetado. A multa é acrescida da comissão de corretagem, o que pode fazer a perda do comprador chegar a 70% do que foi pago, já que a comissão é calculada sobre o total do imóvel.           

Diante dessa desproporção, certamente haverá decisões judiciais que – dependendo do valor efetivo da punição contra o comprador – reduzirão a multa abusiva com base na aplicação do artigo 413 do Código Civil, que estipula: “A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”.           

Esses percentuais elevados de multa afrontam a maioria das decisões judiciais dos Tribunais Estaduais e do STJ que estipulam a multa por rescisão em decorrência de arrependimento do comprador é de 10%, sendo que somente em casos excepcionais ela atinge 25%, ou seja, quando a comissão de corretagem tenha sido paga pela construtora.

MULTAS DESEQUILIBRADAS AFRONTAM O CDC E AUMENTAM OS RISCOS PARA OS COMPRADORES           

Quanto à fruição há outro desequilíbrio. Caso o comprador já esteja ocupando a unidade e rescinda o contrato, pagará de fruição mensalmente correspondente a 0,5% sobre o total do valor do imóvel. Já a construtora, se atrasar além dos 6 meses que a lei permite, só pagará a quantia de 1% sobre o valor já quitado pelo comprador, o que a beneficia.           

Tendo a construtora seis meses para atrasar sem nenhuma penalidade, mais outros seis meses pagar o valor que pertence ao comprador, este ficará mais de doze meses esperando receber seu crédito, e diante da negativa da construtora, continuará tendo que entrar com o processo judicial.

STJ PODERÁ REJEITAR PUNIÇÃO EXAGERADA CONTRA COMPRADOR           

Se realmente o Congresso tivesse a intenção de reduzir as ações relativas as unidades na planta, a nova lei teria estabelecido uma multa de 50% para punir a construtora que não cumprisse a lei e deixasse de pagar o crédito após o prazo de seis meses que é contado a partir da formalização da rescisão. Mas a multa exagerada de 50% só é prevista contra o comprador.  Perguntamos: Será que o STJ aceitará tal abuso? Entendemos que não, pois o Poder Judiciário foi afrontado por legisladores parceiros da assessoria jurídica das incorporadoras que de fato elaborou o texto dessa lei.           

Entretanto, quase ninguém refletiu que na prática, muitas construtoras, ao receberem a solicitação de rescisão, simplesmente se recusam a formalizá-la para criar dificuldades para o comprador, forçando-o a propor o processo judicial. E assim, veremos construtora alegando na contestação que a ação de cobrança do crédito do comprador é precipitada, indevida, porque não ocorreu primeiramente o formalização do distrato.            

O poder legislativo falhou ao aprovar uma lei tendenciosa, desequilibrada, alheia à realidade social, que ao final afronta os princípios do Código de Defesa do Consumidor e as decisões sumuladas do Superior Tribunal de Justiça.  O resultado a longo prazo poderá ser o afastamento de muitos pessoas quanto à compra de unidade na planta, diante dos constantes prejuízos que são motivados pelo fato da incorporador e do construtor poderem descumprir com suas obrigações sem arcarem com os prejuízos que causam aos compradores.

           

Kênio de Souza Pereira

Advogado e Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-MG

Conselheiro da Câmara do Mercado Imobiliário de MG e do Secovi-MG

Diretor da Caixa Imobiliária Netimóveis

kenio@keniopereiraadvogados.com.br  – (31) 2516-7008