Dominar matemática e lógica impede a interpretação equivocada da lei e o rateio injusto da quota
Que critérios usar no rateio da quota de condomínio? Muitos defendem a aplicação da fração ideal como critério de divisão do rateio de despesas do condomínio de unidades diferentes, como ocorre nos edifícios de apartamentos tipo e de cobertura ou nos prédios comerciais compostos por salas e lojas no térreo, apesar de não saberem a origem de sua criação, como ela é calculada e para que serve. Esse problema é mais grave nos edifícios comerciais, onde, às vezes, as lojas pagam mais que as salas por serviços que somente essas últimas utilizam, como a portaria e os elevadores.
Com base em argumentos superficiais aqueles que defendem o rateio pela fração ideal, deixam evidente que não leram o Livro “Condomínio e Incorporações”, de autoria do jurista Caio Mário da Silva Pereira, que criou em 1964 a Lei nº 4.591, que regulamenta “o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias” em onde expõe os desafios que enfrentou para definir o que seria “fração ideal”. Chega a ser cômico o relato do Civilista Caio Mário na página 99, onde cita que os juristas europeus, há séculos, defendiam que a fração ideal seria maior para as unidades que tivessem mais janelas, que fossem mais altas (antigamente só havia prédios com até 4 andares) e, que as unidades menos ensolaradas, sem reformas ou de fundos teriam fração ideal menor.
Lógica matemática
Há 54 anos, de forma brilhante, Caio Mário criou a regra da fração no artigo 12 da Lei nº 4.591/64, que até hoje consiste na mais avançada lei do mundo na área condominial, pois possibilitou a divisão das despesas da construção nas incorporações, onde, logicamente, a unidade maior paga mais que a menor pela sua construção, pois essa consome menos materiais e mão de obra.
A razão da criação da fração ideal no condomínio tem como finalidade básica propiciar ao adquirente da unidade que ainda não existe, saber exatamente quantum pagará pelo custo de seu apartamento, sala ou loja, conforme o seu tamanho. Trata-se de aquisição de propriedade e sobre o seu valor é calculado o ITBI e o IPTU, sendo que esses impostos não tem qualquer relação com o valor da quota de condomínio.
A utilização da fração ideal que está inserida na parte da lei que trata do custeio da construção, não tem nenhuma ligação com o rateio de despesas da quota de condomínio, previsto no artigo 24, que diz respeito aos custos de conservação e manutenção das áreas comuns (portaria, áreas de lazer, garagem, corredores, telhado, faxina, zelador), pois estas são utilizadas igualmente por todas as unidades, independente de seu tamanho.
Refletir para entender
Mudar conceitos não é fácil, pois exige mente aberta, vontade de aprender (o que dá muito trabalho e exige capacidade de entender cálculos) e disposição em trocar ideias sem preconceitos.
A cobertura e o apartamento com área privativa custam mais que o apartamento tipo, então pagam a mais IPTU, bem como ITBI no ato da transferência da propriedade. A mesma regra ocorre com lojas no térreo onde a torre é composta por salas, havendo dezenas de acórdãos que isentam as lojas de pagar despesas (portaria, elevadores, limpeza, etc) que são geradas apenas pelos usuários das salas.
Da mesma forma, um automóvel Gol custa metade do valor de um Chevrolet Cruze, sendo pago 4% do preço do carro referente ao IPVA. Entretanto, ao abastecer, cada proprietário paga o mesmo valor pela gasolina e pelo óleo. Ao trafegar na estrada (semelhante à portaria, corredores do prédio), pagam o mesmo valor pelo pedágio, bem como a hora de estacionamento, pois são automóveis, apesar de padrões diferentes têm a mesma destinação, a mesma capacidade de carga, da mesma forma que os apartamentos, que apesar de diferentes, têm a mesma finalidade residencial. Absurda é a alegação do defensor da fração ideal no rateio de despesas de manutenção, que diz que o apartamento de cobertura/área privativa comporta mais pessoas, como se esta unidade se prestasse a uma pensão, pois a própria convenção prevê seu uso somente unifamiliar.
Pesquisas do setor imobiliário e em especial as perícias judiciais realizadas nas ações que discutem a revisão da forma de rateio comprovam ser comum o apartamento de cobertura ter menos moradores (média de 3) do que os apartamentos tipo que são ocupados por 4 pessoas em média, pois são ocupados por casais mais jovens com filhos menores.
Argumentos ilógicos e frágeis
O defensor da fração ideal utiliza o argumento de que a cobertura deve pagar mais pelo uso do elevador, ignorando a lei municipal que obriga a instalação deste equipamento que valoriza todo o prédio, caso neste ocorra um desnível de mais de 11 metros de altura entre a unidade e a portaria, como por exemplo, em Belo Horizonte-MG. Logicamente, a maioria dos edifícios não possui apartamento de cobertura, mas ninguém comete a insensatez de aumentar o valor da quota de condomínio conforme o andar do apartamento, o que prova que o rateio igualitário é mais sensato.
A cobrança a maior de qualquer quota somente se justifica sobre a despesa e somente se esta efetivamente for gerada em excesso por determinada unidade. As perícias elaboradas pelos engenheiros nomeados pelo juiz nos processos são conclusivas ao afirmar que não há como apurar que uma cobertura gaste mais que a unidade tipo em mais de 80% das despesas que compõem o rateio, razão que torna evidente a impropriedade do uso da fração ideal que não pode ser utilizada para lesar o vizinho que reside melhor. Se determinado vizinho tem maior poder aquisitivo, não pode o condomínio desejar se locupletar sobre sua renda como se fosse o fiscal do imposto de renda.
Rateio de obra é diferente do custo de conservação
O jurista Caio Mário da Silva Pereira, na sua obra “Condomínio e Incorporações”, tece comentários que evidenciam a complexidade do rateio e que exige um estudo profundo para entender que a fração ideal pode gerar divisões injustas no caso do rateio de despesas de conservação e manutenção, razão que motivou o legislador a criar o artigo 24, que deixa evidente que ao artigo 12 da Lei nº 4.591/64 destina-se ao rateio do custo da obra, conforme texto a seguir transcrito:
A situação relativamente ao logradouro público influi sobremaneira, dizendo-se “apartamento da frente” o que tem serventia sobre rua ou praça e “apartamento dos fundos” o que a tem sobre pátio ou área interna e, naturalmente, os primeiros valem mais do que os segundos.
O andar em que se situa é outro elemento importante na composição do preço, costumando-se emprestar maior valor aos andares mais altos do que aos mais próximos do chão, pelo incômodo maior que estes sofrem. Mas, nos prédios não servidos de elevadores a mesma regra se não aplica, porque os mais altos obrigam a galgar as escadas.
Outros fatores secundários são igualmente levados em conta: dar para outro terraço comum; existir ou estar projetada obra pública que melhore a situação do apartamento; não haver certas janelas, portas, vãos ou varandas; a melhor ou pior serventia de luz; a qualidade dos materiais empregados etc.
Fréderic Aéby manda levar em consideração a área, a disposição das peças em relação ao conjunto, a orientação, a altura etc., para a fixação do valor originário.
Poirier apresenta um esquema de divisão de valores em que o rés-do-chão e o andar imediatamente superior representam cada um 25% do valor do edifício; os dois andares seguintes 20% cada, a divisão é, usualmente, mais complicada.
Frédéric Denis esquematiza os direitos sobre a propriedade indivisa, assim como a proporção na partilha dos encargos comuns, atribuindo ao rés-do-chão, zero; primeiro andar, 100 por mil; segundo andar, 120 mil; terceiro 145 por mil; quarto 175 por mil; quinto 210 por mil; e sexto 250 por mil.
Entre nós, tanto o critério do escritor belga como o do francês são inaceitáveis (PEREIRA, 1999: 98-99).
Código civil foi corrigido para evitar dúvidas
Até os legisladores do Código Civil de 2002 cometeram dois erros graves ao definirem no parágrafo 3º do art. 1.331 que “a fração ideal no solo e nas outras partes comuns é proporcional ao valor da unidade imobiliária” e que o rateio somente poderia ser pela fração ideal no inciso I, do art. 1.336. Diante dos equívocos e da insensatez, ao perceberem que esses dispositivos ferem a lógica da fração ideal que se baseia na área construída, conforme ABNT, em 2004, a Lei nº 10.931, deu nova redação aos referidos dispositivos. Assim, eliminou o vínculo da fração ideal com o valor do imóvel e inseriu no inciso I, que trouxe a frase “salvo disposição ao contrário” para confirmar que o rateio pela fração ideal deve ser evitado em determinados casos, para não afrontar os artigos 157, 884 e 2.035 do Código Civil.
Segundas intenções
Como advogado especializado em direito imobiliário, ao ser contratado para participar de assembleias, surpreendo-me ao presenciar proprietários, que se transformam em “legisladores”, pois criam “leis” para justificar seus propósitos, às vezes, inconfessáveis. E, o pior, há pessoas presentes, que imbuídas pela boa-fé acabam acreditando no “saque”, outras fingem que está certo o falso argumento, pois lhe convém manter a situação injusta e irracional, que penaliza o proprietário da unidade que é maior. Há, ainda aquelas nada dizem para não melindrar e evitar conflitos com o vizinho “inventor de leis” que se mostra o “senhor de tudo e de todos” e que, geralmente, é agressivo e não gosta de quem reside numa unidade melhor do que a dele.
Diante desse cenário é compreensível a enorme dificuldade dos proprietários de cobertura, de áreas privativas ou de lojas, que são minoria, fracassarem na tentativa de sensibilizar a enorme maioria representada pelos apartamentos tipo ou salas em alterar a cláusula da convenção que determina o rateio pela fração ideal, que resulta em quotas com valores abusivos, que geram expressiva desvalorização das unidades maiores.
Falta sinceridade
O mais intrigante é que o condômino prejudicado, ao conversar e explicar de maneira particular sobre a ilógica do rateio pela fração ideal, seu vizinho de imediato concorda que essa cobrança é injusta, que não tem sentido a cobertura pagar 50% ou 150% a mais que o apartamento dele. Entretanto, no momento da realização da assembleia o dono da unidade maior fica surpreso com os vizinhos, que concordaram com o rateio igualitário nas conversas em particular, mas que nada falam a seu favor quando deveriam votar conforme a sua consciência, dentro dos princípios éticos e de honestidade.
Os princípios gerais consagrados pela Constituição Federativa e pelo Código Civil proíbem a contratação de forma lesiva, sendo a base do parágrafo único do art. 2035 do CC que determina “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”, sendo inaceitável a cláusula de um contrato, que no caso é a convenção, consagrar uma lesão, configurada pelo enriquecimento sem causa (art. 884 CC) facilmente provado por uma perícia realizada por um engenheiro que esclarece a fração ideal foi implantada na lei de incorporação em condomínio para dividir despesas de construção.
A convenção consiste num contrato sujeito ao crivo do Poder Judiciário, não podendo prevalecer as cláusulas que venham a ferir a lógica matemática, a probidade e boa-fé consagradas nos artigos 421 e 422 do CC, sendo inaceitável pagar em excesso pelo que não gasta e nem utiliza a mais que os demais vizinhos.
Felizmente, muitos magistrados com base numa reflexão mais profunda sobre a matéria, bem como numa perícia que confirma que todas as unidades gastam igualmente ou que é impossível afirmar que as unidades maiores utilizem ou consumam mais que as demais unidades, têm anulado o rateio pela fração ideal que acarreta enriquecimento sem causa.
O fato das unidades menores consistirem num grupo mais numeroso que se aproveita do elevado quorum de 2/3 para inviabilizar a revisão da convenção, não pode consagrar uma situação desequilibrada e injusta, já que a esse contrato particular consiste numa norma subsidiária, inferior, portanto ao CC e aos princípios gerais do Direito.
Kênio de Souza Pereira
Diretor da Caixa Imobiliária Netimóveis.
Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-MG.
Conselheiro da Câmara do Mercado Imobiliário de Minas Gerais e do SECOVI-MG.
Representante em MG da Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário.
Vice-diretor em MG do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.
keniopereira@caixaimobiliaria.com.br